terça-feira, 19 de abril de 2011

Pedido de militares contra novela do SBT é arquivado





O Ministério Público Federal no Distrito Federal arquivou pedido da Associação Beneficente dos Militares Inativos e Graduados da Aeronáutica (ABMIGAer) para retirar do ar a novela do SBT “Amor e Revolução”(foto), que retrata a violenta repressão aos opositores da ditadura brasileira (1964-1985).
O responsável pela mobilização na internet contra a novela, José Luiz Dalla Vecchia, alegava que o programa de televisão poderia colocar a população contra as Forças Armadas. Todavia, a procuradoria argumentou que não foram apresentados “elementos mínimos para justificar a investigação”.
Na abertura do abaixo-assinado da ABMIGAer, que conta com 839 assinaturas, os militares insinuam que poderia existir acordo firmado entre o proprietário da emissora, Silvio Santos, e a Comissão da Verdade do governo federal para quitar as dívidas do Banco Panamericano.“É óbvio que o governo federal, através da Comissão da Verdade, recém-criada, está participando do acordo em exibir a novela”, diz o manifesto.
Em relação a essa suspeita levantada pela ABMIGAer,o procurador Peterson de Paula Pereira é enfático: “conjecturar que a teledramaturgia será exibida em troca de negociatas, objetivando desqualificar a imagem das Forças Armadas, pode ser tão nocivo quanto censurar o folhetim”.
A assessoria do SBT não quis comentar o assunto. Já o autor da trama, Tiago Santiago, lembrou que a tentativa de censura é inconstitucional e interessa apenas a “torturadores e assassinos” do regime militar.
Fonte: B.C

Semana Santa - Tiradentes - Jesus Cristo



Este ano temos  o dia 21 de abril em plena Semana Santa e acontece o que o ideário republicano criou para a imagem de Tiradentes.
 Eles encomendaram aos artistas da época pinturas retratando o martírio e procurando associar a imagem do "Herói da Inconfidência" ao sofrimento e morte de Jesus.
Para isto, muito contribuiu o quadro de Pedro Américo, de 1893, conhecido de todos nós.







Destaco algumas curiosidades: Barba e cabelos longos, crucifixo ao lado (para associação de idéias) e a disposição do corpo esquartejado lembrando o mapa do país.
Já naquele tempo o país sofria de propaganda enganosa, como tem sido muito freqüente nos últimos anos. 
Quem acha que o "marketing político" é uma invenção dos políticos modernos, aqui está uma prova de que manipular as massas é prática desde "priscas eras". Realmente lamentável!

terça-feira, 5 de abril de 2011

A arte de seduzir ( Frei Betto)

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Toda ditadura é megalômana. E a que governou o Brasil sob botas e fuzis, de 1964 a 1985, não foi diferente. A construção da rodovia Transamazônica simboliza a arrogância do regime militar.
Rasgou-se a selva de leste a oeste. Abriu-se a estrada em paralelo a caudalosas vias fluviais. Em vez de aprimorar o sistema de navegação pelo rio Amazonas e seus afluentes, a ditadura preferiu obrigar a floresta a ajoelhar-se a seus pés. Possantes máquinas puseram abaixo árvores milenares encorpadas de madeiras nobres, destruíram ecossistemas preciosos, alteraram o equilíbrio ecológico da região.
Tudo em nome de uma palavra tão propalada e, no entanto, vazia de significado: desenvolvimento. Leia-se: exploração predatória da maior floresta tropical do mundo, aberta à voracidade de mineradoras, madeireiras e, sobretudo, do latifúndio predador, quase sempre movido a trabalho escravo.
"No meio do caminho havia uma pedra”, repetiria Drummond. Povos indígenas. Como impedir que oferecessem resistência? Simples: através da arte de seduzir. A Funai ergueu tapini (cabanas de folhas). Dentro, utensílios de caça e cozinha, ferramentas etc. Os índios, encantados com os objetos, acolhiam gentilmente os caras-pálidas. E ingenuamente eram cooptados pelas relações mercantilistas. Em troca de bugigangas perdiam saúde, terras, liberdade e vida. Detalhe: o mato, não o gato, comeu a Transamazônica, fonte de riqueza e poder de umas tantas empreiteiras.
Hoje, os índios somos todos nós. Os tapini, os shopping, a publicidade, as veneráveis bugigangas que nos agregam valor. O inumano imprime sentido ao humano, como faziam os deuses de ouro denunciados pelos profetas bíblicos: tinham boca, mas não falavam; olhos, mas não viam; ouvidos, mas não escutavam; pés, mas não andavam...
Estamos todos somos sob o efeito hipnótico do consumismo. Não importa se o produto é frágil ou de má qualidade. Seu design nos cativa. Sua publicidade nos faz acreditar que estamos comprando a oitava maravilha do mundo! E, ingenuamente, que se trata de um produto durável, mesmo conscientes de que o capitalismo não se importa com o direito do consumidor, e sim com a margem de lucro do produtor.
Como se livrar do labirinto consumista que, na verdade, se consuma nos consumindo? Não vejo outra porta de saída fora da espiritualidade, somada a uma nova visão do mundo. Sem espiritualidade corremos o risco – sobretudo os mais jovens – de dar importância àquilo que não tem. Imbuídos da baixa autoestima que nos incute a publicidade ("você não é ninguém porque não possui este carro, não veste esta roupa, não faz esta viagem...”) encaramos a mercadoria como algo que nos agrega valor. Não basta a camisa, a bolsa ou o tênis. Têm que ser de grife, com a etiqueta exibida do lado de fora. Assim, todos à nossa volta haverão de reconhecer o nosso status. E quiçá invejar-nos. E aquele ser humano que, ao lado, carece de produtos refinados, é visto como não tendo nenhuma importância. Pois não se enquadra no atual princípio pós-cartesiano: "Consumo, logo existo.”
É espiritualizada toda pessoa cujo sentido de vida deita raízes em sua subjetividade e cujas opções são movidas por ideais altruístas. Ela não faz do que possui –conta bancária, títulos, casa, carro etc.– seu fator de autoestima. Sabe que tem valor em si, que não é nutrido pela posse de bens e sim por sua capacidade de fazer o bem aos outros. Sua autoestima se funda na generosidade, solidariedade e compaixão. Ela é feliz porque sabe fazer outras pessoas felizes.
O mercado tudo oferece. Todos os seus produtos nos chegam embrulhados em papel de presente: se compramos este carro, seremos felizes; se bebemos aquela cerveja, nos sentiremos alegres; se adquirimos tal roupa, ficaremos joviais. O único bem que o mercado jamais oferta é justamente este que mais buscamos: a felicidade. No máximo, o mercado tenta nos convencer de que a felicidade é o resultado da soma de prazeres.
Ora, a felicidade é um bem do espírito, jamais dos sentidos, da cobiça ou da arrogância. É feliz quem ousa destampar o próprio ego e conectar-se com o Transcendente, o próximo e a natureza. Esse irromper para fora de si mesmo tem nome: amor. E se manifesta nas dimensões pessoal, no dom de si ao outro, e na social, no empenho de construir um mundo melhor.
Frei Betto

Walt Whitman

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Conheça o poeta que celebrou o homem comum e a democracia em versos tão livres quanto o espírito das vastidões americanas

No século 17, o filósofo Spinoza afirmou que o supremo altruísmo pode ser alcançado por uma sincera e esclarecida egolatria: amando-nos com lucidez, chegamos a amar completamente o universo e tudo o que nele existe.

Duzentos anos mais tarde, do outro lado do oceano Atlântico, um endividado filho de carpinteiro, nascido em Long Island e criado no burburinho do Brooklyn, trataria de colocar essa antiga ideia em versos novíssimos e transbordantes.

Em vez do sisudo panteísmo de Spinoza, Walter Whitman Jr. (ou Walt, “filho de Manhattan”) recorreu à dicção trêmula dos profetas e dos visionários para compor sua celebração à “Grande Cadeia do Ser”. Folhas de Relva, clássico da literatura universal, é o livro que Walt Whitman viveu para escrever e escreveu vivendo: uma celebração apoteótica do homem comum, espécie de epopeia em que qualquer indivíduo pode ser o protagonista.

Mas é a partir do próprio Whitman – ou de sua imagem distorcida e exacerbada – que o fluxo contraditório do universo é posto em movimento e nos engolfa. Mais que um livro de versos, Whitman criou um personagem exemplar: ele mesmo – ou uma ideia de si próprio, que burilou e transmitiu com a mais engenhosa espontaneidade. Walt Whitman O poeta que nasceu em 1819 ajudou a palmilhar o caminho por uma poesia livre que se misturava a uma vida igualmente sem limites. Sua obra é humana, sensual e cheia de empatia. Walt Whitman, protagonista e narrador das Folhas de Relva, é um indecoroso messias da literatura, que nos convida a participar de sua vadiagem cósmica e de seu autoerotismo metafísico.

Logo na abertura do livro, ele declara: “Eu celebro a mim mesmo/ e o que eu assumo você irá assumir/ pois cada átomo que pertence a mim pertence a você./ Vagabundeio com minha alma.../ observando uma lâmina de grama no verão”. Já Walter Whitman Jr., o autor que labutou por 30 anos para nos deixar versos como esse, é uma figura inapreensível e de sorte ambígua: espinafrado por contemporâneos, ele foi amorosamente mal-entendido pelos pósteros.

O século 20, obcecado por rupturas e ineditismos, celebrou-o principalmente como “inventor” do verso livre: mas seu gênio foi muito além dessa façanha duvidosa que todo poeta adolescente já realizou na solidão de seu quarto. Como observou o crítico Harold Bloom, o brilhantismo de Whitman foi resgatar o potencial xamânico da literatura. Em algumas sociedades arcaicas, o xamã é uma figura que oscila entre diversos mundos e que, por isso mesmo, é capaz de falar com enigmática clareza sobre todos eles. Assim foi Whitman.

Celebrou a si mesmo como emblema do universo – uma celebração que, para ganhar a necessária força e gigantismo, também abarcou a dor, a baixeza, a derrota, conforme demonstra essa curta e inesquecível linha: “Eu sou o homem. Eu sofri. Eu estava lá”. Comunhão universal Em alguns pontos, a figura do vagabundo semidivino, que permeia as Folhas de Relva, opõe-se diretamente ao Whitman dos biógrafos – fato que, convenhamos, torna a coisa toda ainda mais interessante. Walter Whitman Jr. nasceu no vilarejo de West Hill, no estado de Nova York, em 1819. Seu pai era um carpinteiro alcoólatra e perdulário. Dos sete irmãos de Walt, um era inválido, outro morreu em um asilo de loucos.

Whitman passou a maior parte da vida subjugado por trabalhos mal pagos, sempre à sombra da pobreza, lutando para sustentar a si mesmo e a sua problemática família. Não teve dinheiro nem tempo para uma educação formal; autodidata, trabalhou como office-boy, jornalista e tipógrafo, além de seguir por alguns anos o ofício do pai. A posteridade é fascinada pelos hábitos sexuais de Whitman – ou pela ausência deles. Em sua obra, ele descreve a si mesmo como um macho orgiástico, em cópula universal com a natureza, numa espécie de onanismo gnóstico; pode ter sido também um homossexual mais ou menos platônico, ou simplesmente um celibatário feliz.

Bebia pouco, mas era uma espécie de boêmio contemplativo, com uma atração antropológica por submundos urbanos. Meditava sobre o Ser, o Tempo e o Universo passeando por botecos, estalagens, destilarias, estábulos e teatros baratos. Teve poucos amigos de verdade, mas gostava de ostentar sua camaradagem com estivadores, carroceiros e mendigos. Em um texto publicado em 1856, Whitman descreve a si mesmo nestes termos: “Alguém que não se associa a literatos – um homem que nunca é chamado para fazer discursos em lugares públicos... alguém em quem você verá a singularidade que consiste em não ter singularidade alguma”.

Não nos enganemos por essa grandiloquente modéstia: traços singulares não faltavam a esse grandalhão barbudo, secretamente culto, que escondia seu refinamento em meio a brigas de bar e no estrépito das salas de redação – o que torna ainda mais impressionante o artifício de sua simplicidade. Além dos burburinhos do Brooklyn, Whitman amava a solidão dos ermos. Leu Dante à sombra das árvores, em um bosque de West Hill, e viajou pelas páginas da Odisseia sentado em uma gruta marinha, no litoral de Nova York. Suas leituras favoritas também incluíam a Bíblia, as Mil e Uma Noites e os romances de cavalaria de sir Walter Scott – gostos que mais tarde ecoariam em seus próprios versos.

Mas foi entre os vivos que Whitman encontrou a influência catalisadora e definitiva: lendo um contemporâneo, o ensaísta e poeta Ralph Waldo Emerson, aquele jornalista errático, sempre à beira da falência e cheio de tormentos familiares, resolveu finalmente escrever poesia. Homem comum No ensaio “O Poeta”, de 1844, Emerson fez um célebre vaticínio: anunciou o iminente surgimento do Homero estadunidense, um artista capaz de cantar o Novo Mundo que turbulentamente nascia na América do Norte. A Revolução Americana havia terminado em 1783, mas as dores e as paixões do país nascente continuavam em plena ebulição (um processo que culminaria na Guerra Civil, de 1861 a 1865).

Era a época da expansão para o Oeste, das corridas pelo ouro, do conflito sangrento com os índios, da luta pela abolição da escravatura. Emerson queria um poeta que entoasse aquela saga sem se curvar aos cânones herdados da literatura europeia: “A América é um poema em nossos olhos; sua ampla geografia atordoa a imaginação, e não fi cará à espera de métricas”. O jornalista e carpinteiro Walter Whitman Jr. leu essas linhas – e, pouco a pouco, o poeta Walt Whitman começou a tomar forma. Nos intervalos de suas andanças, nas raras horas vagas entre seus inúmeros empregos, pôs-se a rabiscar ideias em calhamaços de caderninhos que carregava consigo.

Em 1855, para horror dos familiares, Whitman parou de trabalhar. Ao longo de meses, passou as manhãs encerrado no quarto, escrevendo; o resto do tempo ficava passeando à beira do mar ou sentado na grama, olhando para o céu. Foi nesse estado semelhante à possessão e à embriaguez que ele completou a primeira versão de Folhas de Relva, publicada com seus parcos recursos naquele mesmo ano. A edição original continha 12 enfáticos poemas – entre eles, “A Canção de Mim Mesmo”, a mais longa e célebre composição de Whitman. Relato de uma epifania compartilhada, numa mistura de prosa e poesia que pareceu chocante à época, a “Canção” começa com o poeta filosofando com displiscência enquanto se espreguiça num gramado, ao sol do verão; espécie de super-homem ocioso, ele se apresenta como “Walt Whitman, um grosso, um cosmos”.

Antes de Whitman, inúmeros escritores haviam recorrido à enumeração de imagens díspares para significar o Infinito: para o místico persa Rumi, do século 13, Deus é um vinho e um pássaro e uma rosa, e também um leão e uma campina e um vento nas montanhas... O grosseirão cósmico de Whitman reinventou esse mecanismo ancestral para significar o que há de mais grandiosamente finito – a individualidade humana, no que tem de comum, de efêmero, de extraordinário.

O herói desse poema pode ser o próprio Whitman ou seus leitores futuros ou aqueles que jamais o lerão. “E sei que o espírito de Deus é meu irmão primevo, e que todos os homens que já nasceram são meus irmãos, e todas as mulheres, minhas irmãs e amantes... E infinitas são as folhas tensas ou pensas pelos campos, e as formigas marrons nas poças sob elas, e a sebe cheia de sebes e ervas e pilhas de pedras...

Sou o parceiro e o companheiro das pessoas, todas são tão imortais e impenetráveis quanto eu mesmo; mas elas não sabem que são imortais – eu sei”. O que Whitman libertou naquelas páginas foi uma poesia de apetite voraz, que a tudo absorve e nada rejeita: os santos, os monstros, os senhores, os escravos, as mulheres perdidas, as mulheres inalcançáveis, os efebos urbanos das sujas ruas de Manhattan, os deuses antigos, as páginas de todos os livros sagrados, a negação dessas páginas, os soldados triunfantes e suas vítimas que agonizam nos campos – todos são invocados com volúpia unânime, até que, por fim, retornamos ao gramado inicial onde o visionário promete: “Me entrego à terra para crescer da relva que amo. Se me quiser de novo, me procure sob a sola de suas botas”.

Hino à terra Whitman esperava que a publicação de seu livro levasse a uma aclamação imediata como bardo da terra – o que naturalmente não aconteceu. Os críticos profissionais se escandalizaram com aquele autoproclamado bronco que versejava sobre ejaculações silvestres; outros o descartaram como um escritor meramente muscular, de vitalidade inegável, mas sem nenhuma sutileza (juízo equivocado que até hoje persegue Whitman). A aprovação, contudo, veio de onde mais importava. Poucos meses após o lançamento do livro, Whitman recebeu uma entusiástica carta de Emerson: “Esfreguei os olhos para ver se esse raio de sol não era uma ilusão. Teu livro é a mais extraordinária peça de sabedoria e de engenho que a América já produziu”.

A voz de um sábio vale mais que o uivo das alcateias: achando-se sufi - cientemente justifi cado por aquele solitário apreciador, Whitman passou o resto da vida reescrevendo, corrigindo, regando e podando suas folhas de relva. Se na primeira edição havia apenas 12 poemas, a última – terminada quase no leito de morte – tinha 400. O homem e o livro haviam se fundido: amadureceram organicamente, reinventando-se até o último suspiro. Whitman morreu em 1892, já reconhecido por muitos como um grande poeta – o que não o livrou de uma velhice pobre e cheia de doenças. Cem anos depois, a figura do bárbaro fanfarrão, que ele construiu cuidadosamente ao longo de décadas, tornou-se o dogma e o álibi de abundantes patotas vanguardistas.

No entanto, como notou Jorge Luis Borges, existe outro Whitman nas Folhas de Relva. Além do sátiro vociferante, ele é também um poeta de translúcido laconismo, dotado de um apreço sutil pelas contingências da vida. Nesses momentos de quase silêncio, Whitman parece nos dizer: somos tão despojados, tão perdidos neste vasto mundo, tão amontoados e tão sós, que cada objeto de felicidade é um presente, uma surpresa e um milagre.
É o que ocorre em um de seus últimos poemas, Uma Clara Meia-noite: Esta é tua hora, Oh Alma, teu voo livre Para o espaço sem palavras, Longe dos livros, longe da arte, O dia extinto, a lição terminada, E tu plenamente emergindo, silenciosa, Observando, ponderando Sobre teus temas diletos: Noite, sono, morte e as estrelas.
José Francisco Botelho
Achadouros 
Acho que o quintal onde a gente brincou é maior do que a cidade.
A gente só descobre isso depois de grande. A gente descobre que o tamanho das coisas há que ser medido pela intimidade que temos com as coisas. Há de ser como acontece com o amor.
Assim, as pedrinhas do nosso quintal são sempre maiores do que as outras pedras do mundo. Justo pelo motivo da intimidade. Mas o que eu queria dizer sobre o nosso quintal é outra coisa. Aquilo que a negra Pombada, remanescente de escravos do Recife, nos contava.
Pombada contava aos meninos de Corumbá sobre achadouros. Que eram buracos que os holandeses, na fuga apressada do Brasil, faziam nos seus quintais para esconder suas moedas de ouro, dentro de grandes baús de couro. Os baús ficavam cheios de moedas dentro daqueles buracos.
Mas eu estava a pensar em achadouros de infâncias. Se a gente cavar um buraco ao pé da goiabeira do quintal, lá estará um guri ensaiando subir na goiabeira. Se a gente cavar um buraco ao pé do galinheiro, lá estará um guri tentando agarrar no rabo de uma lagartixa.
Sou hoje um caçador de achadouros de infância. Vou meio dementado e enxada às costas a cavar no meu quintal vestígios dos meninos que fomos.
Manoel de Barros